Teoria da Corrente Envenenada

A dogmática processual penal brasileira consolidou, sobretudo após a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), a centralidade da cadeia de custódia como instrumento de integridade probatória. Essa legislação, ao introduzir os arts. 158-A a 158-F no Código de Processo Penal (CPP), estabelece as diretrizes para a preservação de vestígios. A lógica subjacente é garantir que toda evidência, desde a sua coleta até o juízo de admissibilidade em tribunal, preserve rastreabilidade, autenticidade e fidedignidade, afastando riscos de manipulação ou contaminação material.

Paralelamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem incorporando a doutrina norte-americana da exclusionary rule sob a roupagem da teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree). Essa teoria, amplamente acolhida no Brasil por interpretação do art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, preceitua que toda prova derivada de uma fonte ilícita é também maculada, salvo as hipóteses excepcionais (descoberta inevitável, fonte independente e atenuação do nexo causal).

Ocorre, entretanto, um vácuo teórico não suficientemente explorado: a colisão entre uma prova formalmente lícita, com cadeia de custódia preservada, e a contaminação material decorrente da ilicitude originária de elemento probatório antecedente.

A Incompatibilidade Estrutural entre Cadeia de Custódia e Prova Ilícita

É nesse espaço que se insere a proposta da Teoria da Corrente Envenenada. Sua premissa central é que a cadeia de custódia opera em plano formal, resguardando a integridade física do vestígio, conforme o art. 158-B do CPP, enquanto a árvore envenenada atua em plano material, contaminando de ilicitude todo o produto que decorra da violação a direitos fundamentais. Diante dessa dualidade, ainda que a cadeia permaneça intacta, não possui aptidão saneadora para purgar o vício originário. Assim, a preservação da cadeia de custódia não pode ser manejada como blindagem para legitimar a utilização de prova cuja gênese remonta a fonte ilícita.

Esse raciocínio estrutura-se sobre três fundamentos:

  • Primazia da garantia material sobre a formal: No conflito entre a proteção à autenticidade procedimental (cadeia de custódia) e a proteção à legalidade substancial (ilicitude probatória), deve prevalecer a segunda, por força do art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal (“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”).
  • Caráter unitário da prova derivada: A prova não se fragmenta em compartimentos estanques. Se a informação inicial é ilícita, os desdobramentos dela oriundos carregam a mesma mácula, ainda que submetidos a procedimentos regulares de guarda e rastreio.
  • Ineficácia saneadora da cadeia de custódia: A cadeia é garantia negativa, voltada a evitar a adulteração (ver art. 158-B, V, do CPP), mas não é garantia positiva, pois não tem força para legitimar o que nasceu ilegítimo. Assim como o lacre perfeito não torna lícito o conteúdo ilícito, a cadeia perfeita não legitima o veneno originário.

A preservação da cadeia de custódia não pode ser utilizada como blindagem processual para admitir prova cuja gênese remonta a fonte envenenada. Em outras palavras, a rastreabilidade formal não neutraliza a contaminação substancial.

Implicações Dogmáticas e Práticas

A parte não pode invocar a integridade da cadeia como critério autônomo para admitir prova derivada de ilícita. Caberá a quem interessa a prova demonstrar que, mesmo diante de um elo contaminado, a prova encontra-se amparada em exceções à árvore envenenada (teoria da fonte independente ou descoberta inevitável, por exemplo). Isso evita que se use a cadeia de custódia devidamente preservada como antídoto contra a mácula original, desviando a análise sobre a origem contaminada da prova e o consequente desrespeito a garantias constitucionais.

Conclusão

A Teoria da Corrente Envenenada defende que a preservação da cadeia de custódia é condição necessária, mas não suficiente, para a validade da prova. Quando um dos elos da corrente probatória é contaminado pela ilicitude originária, todo o conjunto sucumbe. A corrente, por mais intacta que pareça, não resiste ao veneno que escorre da árvore envenenada, em uma clara aplicação da supremacia da norma constitucional sobre os procedimentos formais.

 

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Título do Artigo:
Teoria da Corrente Envenenada

Jeorge Nunes

Perito digital com sólida atuação em computação forense, especializado em sustentar tecnicamente a defesa de réus em ações penais que envolvem provas digitais.

Credenciado como perito nos Tribunais de Justiça de 22 estados, incluindo SP, RJ, DF, GO, RS, PR e outros.

Membro da APECOF (Associação de Peritos em Computação Forense) e registrado no CREA-GO.

Formação: MBA em Informática Forense, MBA em Direito Cibernético, MBA em Gestão de TI (IPOG) e Engenheiro de Software pela UniRV.

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